E-Book, Portuguese, 464 Seiten
Barreno / Horta / Costa Novas Cartas Portuguesas - Edição Anotada
1. Auflage 2012
ISBN: 978-972-20-4615-2
Verlag: D. QUIXOTE
Format: EPUB
Kopierschutz: 0 - No protection
E-Book, Portuguese, 464 Seiten
ISBN: 978-972-20-4615-2
Verlag: D. QUIXOTE
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'Reescrevendo, pois, as conhecidas cartas seiscentistas da freira portuguesa, Novas Cartas Portuguesas afirma-se como um libelo contra a ideologia vigente no período pré-25 de Abril (denunciando a guerra colonial, o sistema judicial, a emigração, a violência, a situação das mulheres), revestindo-se de uma invulgar originalidade e actualidade, do ponto de vista literário e social. Comprova-o o facto de poder ser hoje lido à luz das mais recentes teorias feministas (ou emergentes dos Estudos Feministas, como a teoria queer), uma vez que resiste à catalogação ao desmantelar as fronteiras entre os géneros narrativo, poético e epistolar, empurrando os limites até pontos de fusão.' Ana Luísa Amaral in 'Breve Introdução'
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Geralmente a mulher que dê provas, o homem que as receba. Para isso, entre tantas outras coisas, se nasceu macho e fêmea.
Que mesmo Mariana ao dizer ter recebido provas de amor de seu amante, era as suas próprias provas que gabava, não as dele, valorizando-as assim, entregando-as ao cavaleiro francês como atestado do seu deslumbrado amor, desvario, fitando dele receber em troca o mesmo.
E ingrata será a mulher que se nega a querer a quem a queira, determinada que está desde nascença, a ter sua vida à espera sem pelo menos conquistar direitos de vontade e raivas bem seguras, argumentadas logo como armas. De ingratas, pois, seremos acusadas; estranhas parecendo, logo desencadeando bravas guerras por literárias tidas, porém de raiz mais funda, tecidas, crescidas e aguerridas em maneiras de más consciências e parcas vinhas.
Mitos desfloramos e desfloradas fomos de consentido. Porém de consentidas não nos tomem. Me tomem. Me tomes. Se tome Mariana que em clausura se escrevia, adquirindo assim sua medida de liberdade e realização através da escrita; mulher que escreve ostentando-se de fêmea enquanto freira, desautorizando a lei, a ordem, os usos, o hábito que vestia.
«Talvez de amor vos fale ou de morte» – afirmou dizer ela a sua mãe em carta escrita com modos de orgulho, desprendida. Me servi hoje de palavras dela a fim de hoje vos (nos) escrever, estando em vias de me negar a isso.
Há, sim, uma ameaça: «à nossa vista» saiu Irene Forsyte de casa, deixando com pretexto-paixão, seu marido, enquanto minha irmã, tricotando verde em malha e distracção atenta, nos ouvia.
1/4/71
Lamento de Mariana Alcoforado
para Dona Brites
Que terror, Dona Brites, que ternura.
De minha vida sempre se há desfeito ou tomado tão a esconsas tudo... Mas jamais me senti assim perdida, assim podida, assim com este jeito de todos enganar. E com verdadeiro acerto digo: que interessam os outros senão para os usar?
Meus pobres seios macios, meu longo corpo por descobrir dia e dia e convosco, nunca mãe, Dona Brites, que se nela vos pus ou vós por ela tomei, de enganos me levei a mais enganos. Dos anos alheada ando. Porém como envelhecer sem nada?
Meus passos sei talhados todos ou por talhar moldados nestas lajes. Pedra de gerar pedra me tornei, e quando nas paredes corro os dedos, a língua, é áspero o arrepio de vácuo a que tomo gosto e tacto.
Rêzes, Dona Brites, domadas desde o leite, não o sentis? pois quem nos vale? Não: quem de nós se vale.
Ó terra! Ó Portugal! Ó tanta largueza! Será possível que me falte o ar e na verdade esteja presa?
Os braços estendo, despidos, fora de minha cela: como são frias as grades e alta a janela... longe os ponho, pálidos, magros; magreza com que me desafio, me permite o sol enquanto choro. Choro, Dona Brites, bem o sabeis, quantas vezes me arrancastes assim: hirta, rígida, nua, os braços alteados, estendidos fora da janela e a cara rasgada de a roçar, em lágrimas, pela aspereza da parede, depois pela agudeza das unhas. Sempre então vos debruçais em mim, vossos olhos cor de avelã e mel, os meus pulsos cedidos a vossas mãos firmes, o grito mordido a contragosto na seda de vossos lábios. Em nossa sede por saciar, sempre e sempre bem represa.
Amiga, não, Dona Brites, a odiar-me chegais (quando de súbito e quantas vezes me distancio, me perco, longe). Amiga, não, Dona Brites e jamais também, mãe, em vós, pois será a esterilidade vossa marca, nosso estigma, nossa branca camisa, nosso termo.
Véu tomámos e rendemos corpo à tirania, quem pena de nós terá, se assim é hábito tirar da mulher, a família, contentamento?
Da morte teria tal alegria, que desconfiança tenho não a conseguir tão cedo, mesmo quando a febre a jorros me corre das entranhas e em grandes haustos fico, banhada no sangue de minhas partes vindo. Inútil sinal de mim, marca de pecado, de mal: sinal de gosto, de gozo... tudo então seria tão bem-vindo!
Mas que esperança? Que esperança, Dona Brites, que vida, que tortura. A golpes estou sem escudo: a mulher não se dá espada, nem escudo, nem montada. Homem fora e tal como meu irmão andava de porfia em guerra contra Espanha. Dizem virem franceses (já chegaram?) a auxiliar nossas terras, pois de auxílio precisadas andam, afirmam os avisados. Que prejuízo nos trará ainda esta mudança? E que tem tudo isto a ver comigo, aqui sentada a contar as horas, as madrugadas, como se as tecesse, descrente.
Descrente, ouvis, descrente. Só o fogo me alenta e meus súbitos ataques de ódio a coberto da noite, porém já falados em segredo. Ontem fui chamada e os confessei sem pejo à Madre Superiora. Moderada me ordenou que fosse. Infeliz? «Se essa for a vontade dos Senhores seus Pais.»
De mim que importa?
«Mas viver entre lágrimas, que importa?
Se vida que entre ausência permanece
E só viva ao pesar, ao gosto morta.»12
(Lembrai-vos de quando vos li estes versos e como os decorávamos, ambas? Demoradamente nos beijávamos como que a contrariar a música das palavras.)
«Madre – disse – nada este convento tema de meus excessos, apenas eu os sofro, os ponho e me saem de cada sítio do corpo, de cada meu lugar desabitado. Que interessa aos outros esta ânsia de mundo, esta voragem de terra, esta minha vontade de beber o mar (bebê-lo, Madre, pelo fundo), esta vontade enlouquecida, esquecida, de tocar todas as coisas que erram a fim de as empunhar. De manso morro, Madre, se não afirmo minhas ânsias, não as confirmo nem as vingo. Ocultas as tenho, mas as tenho, vos confio que as tenho e ocultas as deixo, rasgadas, todavia sempre inteiras no grito a lacerar o travesseiro que mordo assim como os braços. Madre, de homem me convenho, já que a mulher só é dado o parir e o parado. Porém mulher o sou e fêmea me sinto. Quem cuida porque gemo e porque minto, porque me quero só e tão esquecida, mais esquecida do que hoje, se possível. De que me serve a vida se me recusais usá-la, sequer a diga? Desde menina obedeço, moldada a rendas, a linho, a costumes em casa de meus pais. Não temeis, pois, meus excessos, que em clausura os ponho, tal como eu, Madre, que de hábito me vejo porque o visto.»
Visto, Dona Brites, estas roupas odiadas. Se até a roupa sou obrigada... Vós mesma já quantas vezes quase à força mas vestistes?
«Para vosso bem Mariana, sabeis ser para vosso bem... que será de vós se vos recusardes a ir à capela ... »
Mas acaso entendeis o que me seria de bem?
«Mariana... Mariana... Mariana ... »
Que pavor, Dona Brites, que secura. Que cegueira enlaçada onde nos pomos. Cedem as pernas à fadiga logo gosto, e todo o meu ventre se abre à vossa boca. Que loucura tomada a contragosto; que ternura súbita subida até ao peito.
Com que rigor me perco. Com que rigor afinal me tenho.
3/4/71
Primeira Carta V
«Mais dura, mais cruel, mais rigorosa
Sois, Lisi, que o cometa, rocha ou muro
Mais rigoroso, mais cruel, mais duro,
Que o céu vê, cerca o mar, a terra goza»13
Porque hoje quero dizer da crueldade.
(Só da minha?)
Irmãs, vos quero dizer da crueldade; daquela que utilizo, dia seguido de outro dia, mesmo comigo, mesmo de castigo, de agasalho. Crueldade serena, quotidiana, em que me dispo: com que me dispo; me visto, prossigo de indiferença, rigor.
Que todo o rigor perante o homem será pouco e necessário é dizer-lhe isso.
Não nos tomarão mais como guerreiros tomavam castelos em vitória, a fim de os habitar não só com leis, espada, mas também com vinho: vigor deles, abastança.
Mulher: abastança de homem, sua semelhança, sua terra, seu latifúndio herdado.
De secretas coisas acusarão o trio; nós os assustaremos na recusa de lhes sermos presa. Falcões que se pousarão, todavia, acorrentados em nossas luvas, em nossas mãos cobertas, defendidas:
Nas tuas, tu que recusas a diferença, nossa casta, a dureza, mas a assumes, a diriges em gume acerado, em sorriso ameno se preciso para ferida, e com palavras meigas e sinais, lhes cortas os testículos.
Nas minhas, eu que vos oiço, me distancio, me crispo, me entristeço e calo de súbito, me recolho de hábito, eu que sou de todas a mais afastada de macho por repeli-lo com violência, aspereza (e susto?), depois de o haver tido (amado?), dele me ter alimentado (amado?), o ter utilizado a frio comigo (amado?)
(de crueldade hoje não vos falo?)
Comigo vive homem que me dá luta e eu respiro, desejo até à dor do vício (amo) nunca permitindo apesar disso que me conduza, me distraia, me destrua.
Nas tuas, tu outra, jamais dissimulada, em guerra clara, posição firme. Contra a...




